Médica seabrense alegra pacientes tocando sanfona em UTI de Salvador
Não fosse o horário em que os pacientes recebem visitas diárias, as poucas conversas entre a equipe médica e os bipes de equipamentos seriam os únicos a quebrarem o silêncio das Unidades de Terapia Intensiva (UTIs). Talvez por isso, os acordes de sanfona que percorrem os corredores de um hospital público em Águas Claras, em Salvador, chamem atenção de quem passa pela unidade. Em um lugar onde a seriedade reina, a leveza da médica Adriane Barreto Cunha, 26, traz alegria para os pacientes internados em estado grave.
Quando ganhou sua primeira sanfona aos 15 anos de idade, na cidade de Seabra, na Chapada Diamantina, Adriane ainda não tinha ideia de que carregaria os 9 quilos do instrumento em um lugar tão improvável. A música e a vontade de ajudar o próximo nunca deixaram de acompanhar a jovem que veio para a capital estudar Medicina. Com o passar dos anos, ela descobriu que juntar as duas paixões seria uma forma de humanizar o tratamento de quem mais precisa.
A ideia de tocar sanfona para pacientes internados surgiu quando colegas de profissão descobriram que Adriane, mesmo morando na capital, faz questão de dar continuidade a tradição do forró, que foi herdada de berço. A avó de Adriane, dona Amélia, de 96 anos, é figurinha conhecida em Seabra. Por lá, todo mundo sabe que nos dias de festa a fogueira da casa é acesa no dia 23 de junho e só é apagada depois do dia de São Pedro.
O clima de tensão da UTI do hospital Eládio Lasserre se transforma quando a médica aparece com a sanfona envolvida no corpo e tocando os acordes de canções de Dorgival Dantas. Por alguns minutos, é como se a batalha pela vida fosse deixada de lado para que os olhos e os ouvidos se atenham apenas à trilha sonora. A proximidade do São João torna a apresentação especial, mas, além da distração, a ação tem benefícios comprovados pela ciência.
“Existem estudos que comprovam que neurotransmissores são liberados nesses momentos e o paciente se sente mais feliz. Há um retorno da sensação de autonomia. Trazer a música faz com que eles se lembrem da vida e voltem a se conectar com suas origens”, explica Adriane Barreto. No perfil do Instagram (@draadrianebarreto), a médica produz conteúdos informativos e ainda mostra seu lado de forrozeira.
A ação, que aconteceu pela segunda vez no hospital na quarta-feira (19), faz parte de um projeto do hospital, que consiste em humanizar os tratamentos. Sabe quando algum paciente passa por uma consulta e tem a sensação de que o médico não lhe deu a atenção devida? É justamente isso que os profissionais de saúde tentam evitar ao olhar para os atendidos de forma mais cuidadosa.
“Nós nos preocupamos com a recuperação física dos pacientes internados, mas muitas vezes acabamos esquecendo da importância dos outros aspectos. A humanização, dentro do contexto hospitalar, mostra que o paciente é um sujeito integral e que precisa trabalhar o lado social e subjetivo”, pontua a psicóloga Ester Maria Dias, presidente da Comissão de Humanização do hospital Eládio Lasserre.
Para além da ação encabeçada pela médica sanfoneira na UTI geral, os membros da comissão aproveitam as datas comemorativas para levar alegria aos pacientes. Na Páscoa, por exemplo, foi organizada uma caça aos ovos com as crianças internadas. “Essas ações alegram não só a UTI, mas todo o hospital. Os benefícios são para os internados e para os colaboradores também”, afirma a gerente de enfermagem Katia Miranda.
O projeto segue a Política Nacional de Humanização (PNH), lançada pelo Ministério da Saúde em 2003. Um dos princípios do HumanizaSUS é envolver os pacientes e seus familiares nos processos de cuidado, através do acolhimento e escuta. Ao mesmo tempo, os trabalhadores da saúde devem ser agentes ativos das mudanças, na medida em que as hierarquias se tornam mais horizontais.
Ainda existem muitos desafios para que a humanização seja plenamente incorporada no Sistema Único de Saúde (SUS), como destinação de verbas e conhecimento dos próprios profissionais. Se o caminho é longo, há quem esteja dando passos curtos, mas precisos, para que o tratamento qualificado e humano se torne prioridade.
“A UTI é um ambiente em que tomamos tantas medidas invasivas e não há nada tão invasivo como restaurar a identidade. Queremos que essas pessoas se lembrem de momentos da vida delas em casa, com a família. Conseguimos resgatar essas lembranças ainda mais estando próximo do São João”, diz Adriane Barreto, a médica sanfoneira.
Wagner em Foco com informações do Correio da Bahia